A intolerante intolerância

A internet mudou a forma como nos relacionamos com o mundo e com o outro, criando bolhas de realidade e intolerância. Mas quando olhamos para a vida de Jesus, o maior exemplo de alguém que, mesmo sendo intolerante ao pecado, escolheu entrar nas nossas bolhas para transformá-las com amor e verdade, encontramos um caminho que desafia nossas certezas e nos conduz à transformação. Te convido a ler até o fim e oro para que talvez alguma bolha estoure em você também, como tem estourado em mim toda vez que olho o mundo a partir dos olhos dEle.

Aquele que é a verdadeira luz, que ilumina a todos, estava chegando ao mundo. Veio ao mundo que ele criou, mas o mundo não o reconheceu. Veio a seu próprio povo, e eles o rejeitaram. Mas, a todos que creram nele e o aceitaram, ele deu o direito de se tornarem filhos de Deus.

Estes não nasceram segundo a ordem natural, nem como resultado da paixão ou da vontade humana, mas nasceram de Deus. Assim, a Palavra se tornou ser humano, carne e osso, e habitou entre nós. Ele era cheio de graça e verdade. E vimos sua glória, a glória do Filho único do Pai.

Quando morávamos no Brasil, durante alguns anos, eu passava por quatro cidades diferentes para chegar ao local de trabalho. Agora, na França, em poucos minutos passo por três cidades e ainda troco de país, chegando até a Suíça. É comum, por aqui, em uma curta viagem durante um único dia, percorrer três países diferentes e, assim, ter acesso a línguas, culturas, climas e a uma variedade de realidades a poucos quilômetros de distância. É uma oportunidade contínua de enriquecimento cultural. Afinal, são diferentes formas de ser e viver em cada realidade — e não importa se é uma cidade ou um país —, o interessante é ver como as pessoas se relacionam com o ambiente em que estão inseridas, como são tragadas por algo que, muitas vezes, nem sabem que as conduz: a cultura.

Pensar na cultura territorial é uma tarefa complexa e desafiadora. Para quem mora num país como o Brasil, onde tudo é grandioso, compreender os diferentes “Brasis” que existem dentro desse grande Brasil — ou, numa menor escala, os microterritórios que se formam nas cidades — é um exercício revelador. Lugares que, a poucos quilômetros de distância, são capazes de absorver o caos de uma Cracolândia e a organização de um Jardim Europa, como acontece em São Paulo.

Quando olhamos para esse emaranhado de comportamentos, a coisa já começa a ficar complexa. E se isso pudesse piorar? O que a internet e as redes sociais estão fazendo com a cultura é algo avassalador. Se antes as pessoas se conectavam nas ruas, nas filas do mercado ou na feira livre do bairro — e isso lhes trazia um sentimento de pertencimento, de identidade cultural e territorial —, hoje essa relação está estremecida. Os vínculos estão mais flexíveis, e as conexões físicas deram lugar às virtuais. A partir de um clique, um ícone ou uma hashtag, somos capazes de encontrar uma infinidade de pessoas que partilham da mesma visão de mundo e, juntas, passam a construir uma nova comunidade virtual, com seus valores, cultura e território.

Se o deslocamento físico nos fazia ter contato com diferentes culturas e realidades — o que permitia que um multimilionário tivesse contato com a realidade de um morador de rua, cuja existência não produz sequer a riqueza necessária para pagar a última troca de veículo —, no mundo virtual essas possibilidades se perderam nas estradas dos algoritmos: dados em grande escala que nos conduzem a uma navegação cada vez mais centrada no nosso umbigo. Apresentar os nossos iguais e nos colocar a um clique de distância dos habitantes do nosso “mundinho” é a missão dos robôs da internet — e isso tem produzido cada vez mais bolhas de realidades que nem as mais bem-sucedidas comunidades conseguiram construir no mundo físico. Se antes era o território que nos unia e permitia que construíssemos nossas conexões com o mundo, hoje esse terreno foi substituído pela internet. E, dentro dela, somos levados ao encontro de tudo aquilo que amamos — ou, mais ainda, odiamos.

Se, num passado recente, o que nos unia era o que amávamos, atualmente é o oposto: o que nos une é o que nos separa. O “não gostar de” é mais importante do que gostar de algo. Tornamo-nos uma sociedade de intolerantes: somos de direita porque não toleramos a esquerda; somos fitness porque não toleramos a gordura. Conhecemos e falamos muito mais sobre o que não suportamos do que sobre o que apreciamos. Atingimos um nível tão profundo de intolerância que não toleramos os intolerantes e, quando vemos, nós é que somos os intolerantes. A intolerância está intolerável.

Não sou ingênuo de achar que ela não existia; ela sempre esteve lá. Mas agora ela aumentou. A internet potencializou os seus poderes: é como um reagente de um vírus que estava incubado e, de repente, saiu do seu estado parasita. A questão é que o vírus em si sempre esteve lá. Afinal, todo mundo tem um pouco de intolerância dentro de si, mas antes não havia espaço para divulgá-la. Com a internet, todos passaram a ter voz, encontraram vozes parecidas com as suas, e a intolerância passou a ser fator de identificação. Pequenos territórios de intolerância começaram a ser construídos, ao ponto de polarizarem as eleições de um país com dimensões continentais. Dois reinos invisíveis brigaram entre si pelo poder — para saber quem tinha a maior comunidade de intolerantes — e, como acontecia na Idade Média, um subjugou o outro. E agora todos se acham o máximo no seu castelinho de intolerância: lar intolerante, lar.

A intolerância criou bolhas tão fortes que sair delas é algo cada vez mais difícil. Se não há desejo de liberdade, a bolha passa a ser o seu habitat. Parece que aquele lugar é a própria realidade do mundo. Se antes o deslocamento territorial permitia conhecer outras culturas e formas de vida, o deslocamento virtual praticamente não existe. Nas vias dos algoritmos, o que importa é você navegar por mares seguros, ladeado por uma infinidade de likes e shares de conteúdos que mostram apenas o que queremos ver. E, assim, parece que o mundo é exatamente assim — mesmo sabendo que não é.

Num mundo construído em torno da nossa intolerância, sair dela requer esforço e — por que não? — sacrifício. Afinal, quando estamos no conforto de estar sempre certos, ouvir alguém que pensa diferente é, para alguns, comparável a ser pregado numa cruz. Colocar-se no lugar do outro, para pelo menos entender o lugar de onde ele está vendo as coisas, é algo muito distante nesse mundo intolerante. Ter a capacidade de visitar outras bolhas se tornou mais caro do que visitar outros países — onde o sacrifício maior é abandonar a realeza do seu trono de certezas.

Quando traçamos esse paralelo de deslocamento, é inevitável olharmos para Jesus e sua trajetória de salvação do mundo. Ele, que é o exemplo maior de intolerância: aquele cujos atributos não lhe permitem nenhum tipo de relacionamento com o que é impuro, e que habita num lugar onde os anjos declaram em todo tempo: “Santo, Santo, Santo” — ressaltando, a cada palavra, sua condição de intolerância, colocando-O acima de todas as coisas criadas, e mostrando que sua existência não permite que Ele se relacione com nada que não seja igual a Ele.

Jesus é Santo, e esse atributo não está relacionado a um título eclesiástico, mas à Sua identidade. Não há nada que se compare a Ele, e Sua natureza é genuinamente intolerante… ao pecado. São dois opostos: onde um está presente, o outro não pode estar. E é essa natureza intolerante que fez de Jesus o Deus-homem que marcou a história da humanidade. É muito interessante entendermos como isso ocorreu, para extrairmos d’Ele aquilo que precisamos para viver de forma impactante como Ele viveu aqui na terra.

Primeiro, vamos entender o cenário. Nos tempos de Jesus também existiam bolhas, mas, como ainda não existia a internet, estas eram territoriais. Nos evangelhos encontramos bolhas religiosas (sinagogas), de enfermidades (tanque de Betesda), de fofocas (ruas e praças), de corrupção (coletoria de impostos). Cada um vivia na sua, apontando para aqueles que estavam do lado de fora do lugar onde se encontravam. Mas, em Jesus, havia algo maior: Sua natureza e DNA — o amor. O amor ao Pai e à humanidade. Jesus amava o homem, mas amava ainda mais o Pai. E, do Seu trono, enxergava a dor do Pai em ver seus filhos perdidos em suas bolhas de dor. Mas, por mais que os amasse, Sua natureza santa não permitia que Ele se aproximasse do homem sem consumi-lo com Sua santidade. Mas algo maior os movia. O Filho olha para o Pai e escolhe sair de Seu trono, desfazer-se de Sua majestade e revestir-se de um corpo corruptível. Jesus sai de Sua bolha para entrar na nossa.

Encarnado como homem, Ele se coloca no lugar de todos. Caminha entre todos. Mas Sua intolerância ainda se faz presente: Ele não suporta o pecado. Mesmo em meio aos religiosos, prostitutas, corruptos e endemoniados, Ele continua intolerante. Mas Sua intolerância não é fruto de uma bolha de vaidade — é consequência de uma natureza santa. Logo, para Ele, não é questão de argumento ou discurso, é quem Ele é. Quando entrava numa bolha — não importava qual fosse —, essa bolha estourava, pois não conseguia suportá-Lo. Mesmo estando dentro da bolha, Seu nível de intolerância era tão alto que Ele podia se relacionar com tudo aquilo que não tolerava sem ser atingido. Sua identidade era mais forte do que tudo. Sua natureza era divina. O Espírito que criou tudo estava n’Ele. E, quando Ele entrava na bolha da prostituta, do corrupto, do religioso, Ele entrava não para exterminar o agente da Sua intolerância, mas para transformá-lo.

Sua intolerância não era maior que Sua natureza. O Espírito de vida estava n’Ele. Logo, Sua intolerância não permitia que Ele se conformasse ao pecado, muito menos o suportasse — mas Sua natureza o levava a exterminar o pecado e transformar o pecador. Foi assim em todas as bolhas que Ele entrou. Foi assim na minha bolha e na de milhares de pessoas ao longo desses últimos dois mil anos.

Ao invés de julgar, condenar e se isolar em Seu trono de glória, Ele continua se colocando no lugar do outro, pagando o preço para que cada um possa sair de sua bolha, mostrando, de dentro dela, que existe vida lá fora. E a vida é Ele, e está n’Ele. O exemplo perfeito do maior intolerante que a humanidade já viu. Que possamos ser cada vez mais intolerantes como Ele foi — e possamos estourar mais bolhas do que Ele estourou. Afinal, o modelo perfeito não está na direita, nem na esquerda — Ele vem de cima, e está dentro de nós!

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